Os admiradores do tradicionalismo sentem prazer em dedicar horas e horas na escolha, feitio, compra e preparo das vestimentas impecáveis que compõem o visual para assistir às apresentações da 24ª Sapecada da Canção Nativa, que na noite desta terça-feira (24) entrou em seu segundo dia, a etapa final, com a apresentação das 16 canções que concorrem no festival. Os apresentadores Kaskão, Kako Martins, Schaina Marcon e Lizi Borges entraram no clima e lideram o cerimonial rigorosamente trajados, carregando as marcas dos costumes sulistas e traços da história dos antepassados do Rio Grande do Sul e da Serra.
Além das roupas, calçados, adereços e joias fazem parte do figurino. Ponchos, palas, palas-poncho, bicharás, capas, camisas campeiras, lenços, botas, guaiacas, esporas, tiradores, coletes, chapéus, barbicachos, paletós, faixas, vestidos e saias de armação são exemplos de vestimentas campeiras, abrilhantados com acessórios e penteados para as prendas, a exemplo de tranças e flores nos cabelos.
Uma mistura de cores e sotaques
O escritor e compositor Juan Daniel Isernhagen, 36 anos, e sua esposa Ana Cristina Moraes Isernhagen, 36, moram em Balneário Camboriú e percorriam os espaços da Sapecada na noite de terça chamando a atenção por suas vestes tradicionalistas. Ele estava com pilcha composta por uma boina vermelha de estilo uruguaio/argentino, menos usual na Serra, pala de estilo chileno curto e retangular nas cores branca, azul e vermelha, ideal para montaria, bombacha larga tradicional trançada nas laterais, lenço vermelho, alpargatas, calçado utilizado para lidas nem tão campeiras e, por fim, guaiaca ou rastra, o cinto do gaúcho.
Ana Cristina preferiu vestir um pala na cor crua com detalhes em preto, broche decorativo e bota de montaria. “Têm de estar em harmonia com a Sapecada, consequentemente, com a Festa Nacional do Pinhão, um evento tão querido por nós, apaixonados pelo nativismo”, confessa Juan Daniel. Na plateia da Sapecada, a advogada Fabiane Bonkevich, vinda de Gramado, optou por uma saia campeira e pala oriental.
De Curitiba, o auxiliar administrativo Tiago Ferreira, 27, e a esposa, a agrônoma Vanessa Biezus, 29, e o amigo de Irati (PR), o estudante Mateus Rodrigo Pereira, 31, acompanham a Sapecada na noite desta terça. Os rapazes vêm a Lages desde 2003 e ela está na Sapecada pela terceira vez. Além de estarem pilchados, uma mateira a tiracolo compõe o look nativista moderno.
Mateus, preso à guaiaca, usava uma tarca (pequenos ossos de cabrito circulares que serviam para fazer a contagem de gado por parte dos tropeiros). “Às vezes usamos estas roupas até em reuniões com amigos. Frequentamos a loja Gauchão Regalos, onde há shows musicais gaúchos. No Paraná as pessoas estranham um pouco se andarmos assim, pois os costumes são um pouco diferentes, mas nós adoramos”, opina o grupo de amigos. O canal do Youtube, Festivais Nativistas, divulgado pelos paranaenses, faz um resgate de todas as músicas em festivais, como as Sapecadas e a Califórnia da Canção Nativa. “É uma maneira linda de manter acesa a chama das tradições de nossa gente”, enfatiza Mateus.
Os mestres de cerimônia
Na apresentação da 16ª Sapecada da Serra Catarinense, o apresentador Kaskão destacava, através de sua linguagem visual, marcos históricos com aspectos mais antigos, com bota garrão de potro, a primitiva bota da América do Sul, antecedente à indústria calçadista, além de estar vestindo chiripá primitivo - peça de vestuário usada no passado pelos homens do campo sul rio-grandenses, argentinos, uruguaios e paraguaios, que consistia num retângulo de pano, feito de lã vermelha, passado entre as coxas e preso à cintura.
Já Kako vestiu bombacha, um elemento que foi inserido nas vestimentas após a Guerra do Paraguai. Na verdade sua origem está na Turquia, ou espólio da Guerra da Criméia, em que houve uma guerra da Turquia e Inglaterra com luta contra a Rússia. E como a guerra terminou antes do previsto, teria sobrado este fardamento (bombacha) e como a Inglaterra estava por trás da Guerra do Paraguai, enviou o fardamento para o Uruguai e por isso as bombachas contam com um friso lateral, o que se assemelha a um traje militar. “A peça facilita os serviços do campo e a cavalo no dia a dia, o que dá certo, permanece”, pontua Mário Arruda.
As gurias
Em relação às roupas femininas, geralmente são de origem europeia. Trabalhos de pesquisa, seriados e produções de cinema mostram as influências da Revolução Farroupilha, com outras alusões à Ana Terra - nome de uma personagem que integra o primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento, trazendo aos figurinos toques regionais conforme a matéria-prima existente no local, sofrendo adaptações. Os detalhes são visualizados principalmente em bichará - tipo de pala de lã crua de ovelha feito em tear manual. É feito de dois panos, tecidos um de cada vez e costurados fora do tear, com abertura para a cabeça. É uma peça com origem jesuíta e era usado pelos índios guaranis. O bichará, na lida rural, consiste em um tecido de lã colocado entre a sela e o cavalo com a intenção de proteger o cavalo e não machucá-lo.
Os músicos
Um dos coordenadores das Sapecadas, Mário Arruda, e exímio conhecedor da história tradicionalista, que lidera o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Barbicacho Colorado, descreve que milhares de pessoas cumprem à risca o ritual de aproveitar as interpretações musicais vestidos a caráter, dignos de um grande evento, um dos maiores da América Latina no gênero. Os músicos que se apresentam nas Sapecadas atraem olhares também em virtude de seus trajes, devidamente pilchados. “O meio nativista é um pouco mais livre nesta questão, mas se vestem em conformidade, logicamente. Não é como um CTG, mais tradicional, em que se deve estar de acordo com o regulamento para participar de eventos, como rodeios. Nas Sapecadas, como prevê o regulamento, podem se apresentar com roupas típicas que identifiquem sua região. Houve um episódio na Sapecada em que um grupo da Bahia defendeu um xote e esteve caracterizado de forma sertaneja”, recorda Mario Arruda.
Houve edição de Sapecada em que músicos que subiram ao palco defendendo canção em que se mencionava o Contestado, portanto, estavam com cartucheiras fixadas em suas roupas. “Um modo de homenagear os antecessores que lutavam pela liberdade, pelas terras, suas ideologias e costumes. A roupa diz tudo sobre uma pessoa e quando ela traz em si uma forma de pensar e de ser, atinge todos com respeito e a hombridade de um povo”, finaliza.
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