terça-feira, 2 de setembro de 2025

7 erros comuns ao trabalhar folclore na escola e como evitá-los

 
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O que chamamos folclore está muito mais perto de nós do que imaginamos e se revela em rituais do dia a dia: está presente nas cantigas de ninar, nas receitas de chás feitos com ervas do quintal e nas histórias sobre a “loira do banheiro” ou na crença de que uma vassoura atrás da porta pode afastar visitas indesejadas. 

Folclore é definido como o conjunto de conhecimentos e práticas culturais de um povo, transmitido de geração em geração, mas isso não significa algo antigo nem estático, ele é uma tradição viva e em constante transformação. 

Para o jornalista e pesquisador Andriolli Costa, há uma má compreensão do que é folclore, o que prejudica não apenas o seu ensino, mas também a própria relação que as pessoas têm com os saberes tradicionais das culturas populares. 

Ele argumenta que se o conjunto de conhecimentos e práticas culturais de um povo é compreendido socialmente como sinônimo de mentira, falsidade, saber pré-científico, eles acabam sendo desprezados, e quando esse entendimento é replicado para os mesmos grupos sociais que experienciam e promovem fatos folclóricos, esses grupos são também menosprezados. 

“Quem vai querer se associar ao folclore se ele é visto como mentiroso, exótico, irreal, anacrônico? Essa é a grande questão”, defende o pesquisador. “Precisamos ter um entendimento de folclore como fonte de  conhecimento, potência transformadora, valor simbólico, sensível, afetivo, que diz respeito a identidades sociais. E não adianta trocar a palavra folclore por cultura popular, cosmogonia ou epistemologia, se a gente não mudar a forma de pensar o folclore.” Ele afirma que o importante é a compreensão de que esses saberes tradicionais têm poder e lugar. 

Construção de identidades

Vanessa Martins, que leciona para turmas de 1º ano do Ensino Fundamental, na rede pública de São Luís (MA), tem a mesma opinião. “É preciso trabalhar o folclore como uma construção de identidade das nossas crianças, porque ele é justamente isso: o conjunto cultural de um povo. Hoje, esse ensino está limitado a personagens que só são lembrados no mês de agosto. É preciso romper essa barreira”, diz.  

Para Marcos Souza, professor de Geografia dos Anos Finais e Ensino Médio, em Aracaju (SE),  é preciso desmistificar a ideia de que folclore é coisa do passado e fazer com que os estudantes percebam como isso faz parte da construção dos hábitos e costumes dos brasileiros. “O folclore é vivo”, frisa. 

Principais equívocos ao trabalhar folclore

Souza pensa que o maior equívoco que pode ser cometido é não pesquisar outras manifestações culturais além das que já estão no livro didático. “Pois o folclore está muito atrelado às culturas populares e, com isso, devem, sim, ser feitas pesquisas continuamente para ampliar o repertório em sala de aula.”

Confira outros erros que devem ser evitados:

1. Entender folclore como mentira

Andriolli acredita que o principal equívoco é tratar o assunto como fenômeno de mentiras. “É um grave problema e a gente encontra exemplos disso quando, por exemplo, o professor conta uma história de assombração e as crianças brincam de sentir medo. Às vezes, não estão com medo, é só pelo jogo, mas o professor diz que aquilo tudo é mentirinha.” 

Mesmo que seja para apaziguar a turma, a mensagem que ele passa é de desimportância. Andriolli defende usar as narrativas que fazem parte do nosso folclore como chave de leitura para a sociedade. 

“A lenda do Negrinho do pastoreio, por exemplo, abre caminho para pensar e discutir racismo. Histórias da mula-sem-cabeça podem servir para falar sobre gênero e controle do corpo feminino.” Ele acredita que, dessa forma, é possível trabalhar o folclore de maneira contemporânea, sem colocá-lo em uma caixa de mentiras.

2. Não considerar as regionalidades

Vanessa considera um equívoco tratar os personagens folclóricos como se todos fossem referências nacionais. 

“Aqui (São Luís (MA), personagens como Curupira, o protetor da floresta, ou Iara, a guardiã das águas, são figuras conhecidas pelas crianças, mas o Negrinho do Pastoreio, muito popular no Rio Grande do Sul, não circula tanto, assim como a Cuca", explica.

Na opinião de Souza, para evitar equívocos, os professores precisam fazer uma curadoria de forma holística sobre as culturas populares do Brasil. “É preciso manter contatos com pessoas pertencentes a essas culturas, para que os professores ampliem seu repertório e despertem em seus estudantes a importância da valorização cultural.”

3. Reduzir o assunto a mitos e lendas

Restringir o folclore a sinônimo de mitos e lendas é outro engano cometido nas escolas, acredita Vanessa. “As histórias e os personagens folclóricos carregam em si uma verdade simbólica, afetiva”.

A professora alerta para o perigo dessa abordagem superficial que, em vez de educar e expandir o conhecimento, apenas repete o óbvio e limita a compreensão sobre o tema. 

"Folclore são todos os elementos transmitidos pela tradição que constroem a identidade de um povo, e a definição de 'povo' pode ser muito ampla. Nos Estados Unidos, por exemplo, se estuda o folclore de forma compartimentada. Folclore surdo, queer…", explica Andriolli. Isso mostra que o folclore também se manifesta em grupos com identidades e tradições próprias.

Andriolli usa a metáfora da árvore para explicar as ramificações do assunto. Assim, as raízes representam a tradição e entre seus vários galhos está a literatura oral, onde moram as narrativas, os contos populares, as cantigas de roda, e todos os elementos que estão ligados à performance à poética oral. 

“Mas temos ali outros componentes, como pratos típicos, danças populares e festas regionais. Todos são elementos de tradição e de valorização folclórica.” E completa: “É fascinante olhar para a história do saci, mas é importante entender que desse mesmo substrato também é feita a ideia da proteção oferecida pela espada de São Jorge na frente da sua casa, a cantiga de ninar que a sua mãe cantava ou o chá de quebra-pedra para os problemas renais.”

4. Concentrar o tema apenas no Dia do Folclore

Pesquisador e professores concordam que outro problema grave é concentrar o assunto folclore no mês de agosto. “O ideal seria que a gente convidasse as pessoas a pensar em folclore o ano inteiro, porque ele é parte do nosso cotidiano, ele é presença, constância, identidade, familiaridade", diz Andriolli. Vanessa também acredita que abrir espaço para esse trabalho durante todo o ano letivo é muito mais rico e complexo.

5. Não dar espaço para as vivências dos alunos

Outro ponto apontado por Vanessa é como o tema é trabalhado em sala de aula. “Não adianta apresentar desenhos prontos para os alunos pintarem, sem que haja uma contextualização, sem fazer com que a criança pense ou exercite seu lado criativo.” 

Ela diz que conta uma história, apresenta referências, e conversa com a classe porque as crianças trazem mais elementos, a partir da vivência delas. A professora diz que gosta de trabalhar com releituras, por isso, mostra imagens e os convida a serem protagonistas no processo e a vivenciar a experiência: “o artista é você, como você desenharia esse personagem?” 

6. Tratar as manifestações como simples superstição

Vanessa aponta que é preciso cuidado para não tratar a questão do folclore como algo raso. “É necessário realmente se aprofundar na temática, e não tratar como superstição ou com preconceito as manifestações populares.” 

Nesse caso, segundo ela, há um trabalho importante de abordar com respeito  às religiosidades por meio da história, de forma realmente consciente e com intencionalidade pedagógica.

7. Ensinar folclore como algo só do passado 

Andriolli acredita que para mudar a mentalidade de como o folclore ainda é tratado é necessário convidar os professores a novas abordagens.  Ele cita uma experiência de conscientização ambiental feita numa escola no Paraná. 

A atividade tinha o objetivo de conscientizar sobre a proliferação da dengue e envolveu o Saci como protagonista. A mensagem trabalhada foi que, ao bagunçar as coisas, o Saci virava os pratinhos que armazenavam água depois da rega, dificultando a reprodução dos mosquitos de dengue que, assim, sumiram da escola. 

“Este é um exemplo de como vincular a narrativa com uma ação prática e atual, e ver que as coisas não estão afastadas do mundo. É possível construir outros sentidos para algo presente na vida da pessoa. Folclore é conhecimento.”

Como propor boas atividades de folclore

Na opinião do jornalista e pesquisador Andriolli Costa, para mudar a mentalidade de como o folclore ainda é tratado em sala de aula é necessário convidar os professores a aderir a ideia de que esse estudo é dinâmico, mostrando a eles que, quando esse olhar é ampliado, gera possibilidades de enriquecimento na formação cidadã dos alunos.

“Ao fazer isso, nós encontramos um caminho para pensar o tema de maneira extremamente complexa, com entroncamentos entre cultura e sociedade, cultura e história, cultura e biologia, cultura e ciência, cultura e matemática, enfim, é possível fazer esse vínculo com outras áreas.” 

Números e tradições

Ele cita o livro O Folclore da Matemática, do professor Júlio César de Mello e Souza, cujo pseudônimo era Malba Tahan, que fala como usamos a Matemática no dia a dia de forma prática e cultural. 

“Nesse livro, ele tenta entender como é a nossa relação com números: o que  significa o um, o que que é o sete da perfeição ou o 13 da superstição?”.  É um conhecimento numérico passado adiante não por fórmulas ou livros didáticos, mas de forma oral ou como as medidas nas receitas de família, que recomendam “uma pitada” ou “o equivalente a dois dedos de altura", revelando uma relação com os números que é intuitiva, prática e profundamente humana.

Resistência popular

Por outro lado, Andriolli cita o folclore também como manifestação de resistência, por exemplo, como acontecia durante a Ditadura Militar (1964-1985), no Brasil, quando a população de um bairro ou de uma cidade castigava simbolicamente seu governante malhando um boneco, o Judas. “Então também tem um lado de pensar as culturas populares como resistência, porque isso não interessa a um governo autoritário.”

Realidade do entorno

Para Vanessa Martins, que leciona na rede pública de São Luís do Maranhão, para mudar a chave no ensino do folclore é preciso investir na boa formação dos professores, em leituras e em atividades mais dinâmicas e interessantes para as crianças. 

Vanessa conta que fez uma caminhada diagnóstica com seus alunos do 1º ano, no fim do semestre passado, em uma comunidade de pescadores que fica perto da escola onde leciona.  Na trilha, as crianças se impressionaram com a quantidade de lixo no entorno da escola e nas margens do canal. 

O intuito da caminhada foi abrir caminho para apresentar a Iara, protetora das águas, e desenvolver a consciência ambiental, tema que será abordado neste segundo semestre. “Não é só apresentar os personagens do folclore de forma aleatória, mas conhecer com sentido e dar significado para eles.”

Manifestações locais

Marcos Souza, que leciona Geografia em Aracaju (SE), defende práticas como estudo dirigido sobre manifestações culturais do município, estado e outras regiões do Brasil, a organização de exposição e atividades com representantes de grupos folclóricos são formas de trabalhar o tema de maneira crítica em sala de aula. 

Como material didático, Souza sugere o uso de audiovisuais de grupos culturais com canal no YouTube, por exemplo. “O professor pode mostrar o vídeo em aula ou entregar e fazer uma análise com os estudantes e em seguida produzir cartazes e/ou cordéis sobre o tema, ou ainda entregar um QR Code aos estudantes, pedir que assistam ao vídeo em casa, que façam resumo e na aula seguinte a classe debate e faz um mural colaborativo com o resultado para expor na escola.”

Republicação do site Nova Escola


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